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O Discípulo e o Cemitério

Certo dia um Mestre disse ao seu Discípulo:

M – Vai ao cemitério e elogia os mortos. Presta atenção ao que eles respondam, depois tens de me contar.

O Discípulo, como sempre, obedeceu, apesar de não saber o que pretendia o seu Mestre, e sentir receio de que, na noite, os espectros se mostrassem visíveis. Vencendo os seus medos e dúvidas dirigiu-se ao cemitério e começou a dizer:

D – Oh vós que agora estão mortos, que sacrificastes as vossas vidas e felicidade pelos vivos, vocês, músicos e poetas, vocês que trabalharam com o suor frente à terra, e vocês mães que com dor e sofrimento pariram e alimentaram os filhos, vocês que com passo mais alegre ou mais pesado caminhaste pelos caminhos da vida carregando sempre o fardo do destino: Imagino-os agora luminosos, pacientes, amáveis, afortunados, inteligentes, sem o peso da matéria que obscurece a chama interior, desejosos de ajudar, já sem vícios nem paixões, bondosos e sempre sorridentes, alegres e livres do peso da experiência e das recordações amargas.

Depois escutou pacientemente, atento a qualquer resposta que imaginava que não iria ocorrer, mas mesmo assim o seu corpo estava tenso, e não sabia como reagiria face a qualquer manifestação do mundo oculto….Mas nada sucedeu, só uma brisa fortuita agitou suavemente os ramos das árvores…

M – Então, meu querido Discípulo, ouviste algo?

D – Não Mestre, não ouvi nem vi nada de estranho.

M – Bem, Bem…. Pois então, dirige-te de novo a eles, mas em vez de os elogiares, roga-lhes pragas, critica-os, insulta–os. Presta atenção, para depois me comunicares qual foi a sua resposta.

Assim fez o Discípulo. Dirigiu-se de novo ao cemitério, reprimindo certas dúvidas sobre as intenções do Mestre que se formavam na sua mente, para não julgar, e assim poder ouvir….e aprender.

Uma vez lá gritou:

D – Vocês, mortos, que estais fora do cenário da vida, sem sensibilidade, mas não sem culpa, porque entre vós estão alguns que foram ladrões, mentirosos, cobardes, traidores á sua pátria e a suas amizades, mesquinhos e miseráveis, despóticos com os vossos subordinados, alegres na estupidez e na ignomínia, violadores, sedutores e tantos outros vícios que a mente, só com a enumeração, desfalece. E há ainda os que subjugaste o pior da natureza, quantos erros, quantas injustiças, quantas desatenções e faltas de cortesia, quantas faltas pela obsessão, pela cegueira interior, tantas que merecerias, como eu também mereço, arder no fogo da infelicidade e da angústia. Muitos dos que ainda vivem e se recordam de vocês odeiam-vos e insultam-vos, lançam-vos injúrias, chamando-lhes vis, cobardes, luxuriosos, bêbados, insensatos, despojados de vontade, sádicos para com os vossos entes queridos…..

De novo, em silêncio, manteve-se atento esperando ouvir o menor sussurro de resposta. Mas a quietude, tensa, era se possível maior que a da vez anterior.

Quando esteve de novo junto do seu mestre, este perguntou-lhe:

M – E então? Ouviste agora algo? Os mortos responderam-te aos insultos?

D – Não, mestre, não ouvi nada.

M – Pois a partir de agora assim o deves ser, se queres iniciar o Caminho da Sabedoria, face ao mundo tu estás morto mesmo que te elogiem, que te insultem ou critiquem, mesmo que mencionem o teu nome com orgulho ou com desprezo. O único tribunal a que tens de pedir contas é ao da tua própria consciência. Tão silencioso e imperturbável como os mortos face à crítica ou ao elogio, logo também face ao abatimento ou à vaidade.

Conto oriental adaptado por José Carlos Fernández, diretor da Nova Acrópole de Portugal.