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A Flauta Mágica

“A Flauta Mágica” de Mozart é um dos mais maravilhosos testamentos musicais que nos foram legados por um filósofo-músico. Mozart não foi apenas músico, foi também um filósofo no mais profundo sentido da palavra. Procurou criar uma ponte entre o humano e o divino através do amor, tal como está evidenciado não apenas na “Flauta Mágica”, mas também em toda a sua obra. Sendo essencialmente apolíneo na sua expressão artística, na qual a medida do belo sublima o passional, Mozart conheceu o rapto dionisíaco que eleva a consciência a um mundo superior. Na “Flauta Mágica”, o apolíneo, a iluminação do divino e o dionisíaco, a transmutação do humano, vão de mãos dadas.

“A Flauta Mágica” estreou em 30 de setembro de 1791, em Viena, pouco mais de dois meses antes da morte de Mozart, em 5 de dezembro do mesmo ano. O libreto da obra é de autoria de Emmanuel Schikaneder, ator e irmão maçônico de Mozart.

O musicólogo Otto Jahn popularizou a teoria de que a obra havia sido criada em poucos meses e que continha contradições internas, como a transmutação da Rainha da Noite entre o primeiro e o segundo ato, devido à pressa com que tinha sido composta. Uma carta trocada entre Mozart e Schikaneder, datada de 1790, na qual se faz referência a pormenores de uma das últimas cenas, demonstra o contrário.

O ARGUMENTO
 

No princípio da obra vemos Tamino, um príncipe chegado de longínquas terras, fugindo de uma enorme serpente. Três damas que se dão a conhecer como damas de companhia da Rainha da Noite salvam-no. Numa cena posterior, a mesma Rainha da Noite apresenta-se e encarrega o príncipe de salvar sua filha Pamina, que havia sido raptada pelo malvado Sarastro. Acompanhará Tamino na sua busca Papageno, um pobre e inocente homem coberto de penas, cuja função é caçar pássaros para a Rainha da Noite, em troca de pão e vinho. Os dois recebem uma flauta e um jogo de campainhas mágicas como presente, e como guias, aparecem três jovens “formosos e sábios”.

Papageno é o primeiro a encontrar Pamina após uma disputa com Monostatos, seu carcereiro mouro, e foge com ela. Entretanto, os três jovens levam Tamino até a entrada de três templos, ou seja, o da Sabedoria, o da Razão e o da Natureza. Ouvem-se vozes que impedem o príncipe de entrar nos templos, exceto o do centro, que é o da Sabedoria. Tamino encontra depois um sacerdote que lhe explica que foi enganado e que Sarastro não é tão mau como ele pensa. O Príncipe fica então completamente desconcertado e, sentindo-se só, pergunta: “Eterna Noite, quando retrocederás? Quando acharei a luz?” E vozes invisíveis respondem: “Já, ou nunca!”

Vemos logo para que servem os dois instrumentos mágicos, a flauta de Tamino e as campainhas de Papageno. Ambos têm o poder de encantar as feras, aplacar a cólera e trazer paz aos corações.

No fim do primeiro ato, Sarastro regressa de uma caçada no seu carro puxado por leões. Tamino, Papageno e Pamina são aprisionados por Monostatos e levados à presença do sumo sacerdote. Tamino e Pamina encontram-se pela primeira vez e Sarastro ordena que sejam introduzidos no templo das provações com as cabeças cobertas, pois ainda não haviam sido purificados.

No segundo ato, tanto Tamino como Pamina são submetidos a várias provas. Tamino é tentado pelas três damas da Rainha da Noite, mas não cede às suas intrigas e mantém o voto de silêncio. Pamina recebe de sua mãe, a Rainha da Noite, ordem de assassinar Sarastro, mas prefere o suicídio a seguir os passos da sua progenitora ou ver-se separada de Tamino, que julga já não a amar, por ter mantido o seu voto de silêncio perante ela. Os três jovens salvam-na e convencem-na que Tamino continua a amá-la. Entretanto, Papageno tentou acompanhar Tamino, mas os Mistérios e as Provas não são para ele.

“Os Mistérios maiores encontram-se simbolizados pela passagem através dos quatro elementos que realizam em conjunto Tamino e Pamina guiados pela Flauta Mágica”

Uma vez reunidos, Tamino e Pamina têm de confrontar-se com a mais perigosa das provas, a passagem através dos quatro elementos, simbolizados na obra pelo Fogo e a Água. A Flauta Mágica guia-os através dos elementos e o seu triunfo nos Mistérios de Ísis é proclamado.

Entretanto, Papageno opta pelo suicídio, achando que a vida é ingrata para ele, não lhe oferecendo sequer o amor de uma mulher. Os jovens intervêm e salvam-no tal como fizeram com Pamina, e Papageno encontra a sua noiva prometida, a Papagena. Monostatos torna-se aliado da Rainha da Noite e suas hostes para destruir o templo solar, mas as forças da escuridão são repelidas para sempre.

A obra termina com a seguinte invocação: “Salve Iniciados, haveis penetrado no seio da noite. Graças a vós, Ísis e Osíris! A Força venceu e a Beleza e a Sabedoria foram premiadas com a coroa eterna”.

FONTES SIMBÓLICAS

Os principais elementos simbólicos utilizados na Flauta Mágica pertencem à tradição alquímica e astrológica. O enquadramento egípcio (a obra desenrola-se principalmente num conjunto de templos dedicados aos Mistérios de Ísis e Osiris) deve-se à fascinação que causou o redescobrimento do Egito no século XVIII e a influência que exerceu sobre Mozart, o humanista Ignaz von Born, autor de um livro sobre os Mistérios egípcios.

Através de toda a sua obra são perfeitamente claros os símbolos alquímicos: o fato, por exemplo, de Tamino e Pamina terem de passar pelos quatro elementos, simbolizados na obra pelo Fogo e pela Água; os sacerdotes reunirem-se num bosque de palmeiras de prata com folhas de ouro. Os diversos personagens também se relacionam com os diferentes planetas do sistema astrológico, ou seja, dois astros e cinco planetas.

A Rainha da Noite relaciona-se com a noite e os mistérios lunares; o seu reino é a floresta. Sarastro, que no final do primeiro ato aparece num carro puxado por leões, encarna as forças solares. Junto com estes símbolos, a presença das chaves numéricas acompanha os elementos de interpretação da mensagem da obra. O número três e o seu simbolismo é o mais frequentemente utilizado (as três damas, os três jovens, os três templos, os três acordes iniciais da abertura, entre outros, demonstram a importância do número três).

AS TRÊS ETAPAS ALQUÍMICAS
 

Podemos estudar a estrutura da obra de acordo com as três etapas alquímicas:

A Obra ao Negro, regida por Saturno: na obra corresponde ao primeiro ato, que decorre principalmente na floresta. Durante esta etapa o principal obstáculo é Monostatos, relacionado com Saturno, isto é, a prisão da matéria. Temos o carcereiro de Pamina que se interpõe entre Tamino e Pamina (no fim do primeiro ato) pois está apaixonado pela Princesa sem poder possui-la.

A Obra ao Branco, regida pela Lua: na obra corresponde às primeiras provas a que se submetem Tamino e Papageno, e também, por seu lado, Pamina. Nesta etapa não se realizou, ainda, o matrimônio alquímico.

A Obra ao Vermelho, regida pelo Sol: guiados pela força solar, Tamino e Pamina, agora reunidos pelo matrimônio alquímico, passam através dos quatro elementos. Nesta etapa são também dizimadas definitivamente as hostes da Rainha da Noite e Monostatos, símbolos da matéria inferior.

AS PERSONAGENS
 

A Rainha da Noite: Soberana da floresta e dos poderes psíquicos. Aparece num trono recamado de estrelas. A sua ambição faz com que ela queira destruir o templo solar e usurpar o poder ao ver Sarastro suceder ao pai de Pamina como sumo sacerdote do templo.

Sarastro: O sábio perfeito, humilde servidor dos Deuses Ísis e Osíris, como o demonstra em inúmeras passagens da obra ao invocar a Vontade divina.

Tamino: Príncipe chegado de longínquas terras, como acontece em quase todos os contos tradicionais. É puro, valente e sincero, e foi predestinado pelos Deuses para suceder a Sarastro e unir-se a Pamina em matrimônio sagrado.

Pamina: Princesa, filha da Rainha da Noite e do hierofante antecessor de Sarastro. Deve superar a dúvida e transmutar a sua natureza lunar em solar. Representa a passagem entre Vênus Pandemos e Vênus Urania, isto é, a alma dual.

Monostatos: O carcereiro de Pamina, representado como mouro. A sua natureza é tirânica e passional.

Papageno: Lembra-nos a personagem de Sancho Pança. Acompanha Tamino, mas de má vontade. Prefere os prazeres simples aos elevados Mistérios. A sua contraparte é Papagena com quem, por fim, se completa.

As três damas: Acompanham a Rainha da Noite e simbolizam as três qualidades da matéria.

Os três jovens: Encontramo-los tanto na floresta como no reino de Sarastro. São as forças invisíveis da natureza que acompanham os discípulos.

PROVAS E INICIAÇÕES
 

Estas realizam-se através de toda a obra, ainda que mais formalmente no segundo ato. No primeiro ato vemos em uma cena Tamino tocando a flauta mágica e todas as feras da floresta submetendo-se ao seu encanto. Mas a um dado momento recorda-se de Pamina e o encanto desaparece; o discípulo renuncia aos poderes inferiores e continua em busca da sua alma.

As iniciações e provas do segundo ato não são só rituais, mas encerram também um perigo efetivo, como se vê numa invocação de Sarastro aos Deuses Ísis e Osíris: “Oh! Ísis e Osíris, iluminai com o espírito da Sabedoria o novo par. Vós que guiais os passos dos caminhantes, fortalecei-os com paciência no perigo, e fazei com que eles possam ver os frutos das provas. Mas se tiverem que morrer, recompensai a virtude do seu valoroso esforço e acolhei-os em vossa morada”. Estas linhas fazem-nos recordar as palavras de Krishna no Bhagavad Gita: “Morto ganharás o céu, vitorioso dominarás a terra; assim, pois, ergue-te, Parantapa, e apressa-te a lutar”.

No segundo ato, Tamino mantém o voto de silêncio que lhe haviam imposto e repele as três damas. Pamina tem de escolher entre a sua mãe e o reino solar, que comporta a separação de Tamino. Estas provas pertencem aos Mistérios menores e alude-se a elas na obra como etapas de purificação.

Os Mistérios maiores encontram-se simbolizados pela passagem através dos quatro elementos que realizam em conjunto Tamino e Pamina guiados pela Flauta Mágica.

OS INSTRUMENTOS

A flauta de Papageno recorda-nos a Siringe de Pã na Grécia. Na obra somente toca os cinco primeiros tons de uma escala maior.

As campainhas mágicas entregues a Papageno relacionam-se com certas forças e poderes da natureza. Todas as antigas tradições nos falam do poder das campainhas para evocar as forças invisíveis.

A Flauta Mágica fora talhada numa noite mágica pelo pai de Pamina que arrancara o pedaço de madeira duma velha árvore. No primeiro ato, a flauta é entregue a Tamino pela Rainha da Noite, o que lhe permite dominar a natureza. Mas logo lhe é retirada ao começarem as provas, sendo-lhe devolvida algum tempo depois. Com a flauta, Tamino e Pamina atravessam com êxito os quatro elementos.

Segundo a tradição grega, a flauta havia sido inventada por Atena, mas esta ao ver que se lhe desfigurava o rosto quando lhe tocava, amaldiçoou-a e lançou-a ao chão. A flauta foi depois encontrada por Marsias, que com ela desafiou Apolo numa contenda musical, tendo pago caro o seu atrevimento. A flauta é como uma coluna com diversos orifícios (tal como a coluna vertebral) e o seu abuso relaciona-se com a advertência que nos é feita na Voz do Silêncio sobre os Siddhis inferiores.

Como filósofos é importante que saibamos descobrir e reconhecer as pegadas dos homens que sonharam e trabalharam pelo advento de um Mundo Melhor. Mozart não somente foi um deles, como foi também o criador duma misteriosa mensagem escrita na nossa constelação histórica para nos recordar que deus e os mestres sempre nos acompanham

Harry Costin, professor de Nova Acrópole.