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Criação do Mundo para os Índios Dessana

Deus criou o mundo em 7 dias…do Caos grego saíram os cinco primeiros deuses…Bhrama tudo criou…Estas são todas referências da criação mais ou menos conhecidas para a maioria de nós. A história bíblica é a mais conhecida no mundo cristão, a mitologia grega nos vem a partir de todo o legado cultural do Ocidente e já a mitologia hindu nos chega a partir do resgate mais recente da religiosidade e cultura orientais. Mas, e o que dizer dos mitos da criação dos índios brasileiros?

Enquanto o distante e exótico da cultura celta ou hindu nos desperta fascínio, pouco sabemos a respeito dos mitos de nossos próprios (e distantes) ancestrais. A alma brasileira, além da influência européia e africana, tem um importante componente indígena que precisa ser resgatado e melhor conhecido. Dizia Micea Eliade (1978) que o sagrado é parte da estrutura da consciência humana e a mitologia, neste caso, seria a expressão mais evidente desta nossa relação com o sagrado, manifestando-se em todos os povos conhecidos. Assim, o olhar para a mitologia dos índios brasileiros pode representar mais um importante caminho de conexão com o sagrado e lançar luz sobre a nossa busca por padrões e semelhanças que nos revelem um pouco mais sobre os mistérios da “criação”, formação humana e da natureza, entre outros.

O mito da criação dos índios Dessana do Alto Xingu, traz-nos, por exemplo, um pouco dessa inspiração e revela muitas semelhanças com outros mitos mais explorados.

“A princípio não havia nada e as trevas cobriam tudo. Uma mulher, Yebá bëló se fez a si mesma a partir de seis coisas invisíveis: bancos, suportes de panela, cuias, cuias de ipadu (coca), pés de maniva (muda de mandioca) e cigarros. Na sua morada de quartzo, enquanto mascava ipadu e fumava cigarro, começou a pensar em como deveria ser feito o mundo. Seu pensamento começou a tomar forma de uma esfera, culminando com uma torre. A esfera incorporou a escuridão. Ainda não havia luz, a não ser no compartimento onde estava a mulher, que era todo branco, de quartzo. Depois criou cinco trovões imortais, e deu a cada um deles um compartimento da esfera. Na extremidade da torre ficava um morcego de asas enormes. Esses compartimentos tornaram-se casas, e só neles havia luz, como no compartimento de Yebá bëló. Esta encarregou os trovões de fazerem o mundo, criarem a luz, os rios e a futura humanidade.

A casa do primeiro trovão ficava no sul. A do segundo, no leste, na cachoeira Tunuí, no rio Içana. A do terceiro ficava no alto; nesta é que ficavam as riquezas, os enfeites de dança mágicos para formar a futura humanidade. A casa do quarto trovão ficava a oeste, no rio Apaporis. A do quinto, no norte, na cabeceira. Yebá bëló, por sua vez, criou um ser invisível, Ëmëko sulãn Palãmin, e deu-lhe a ordem de fazer as camadas do universo e a futura humanidade. Ëmëko criou o sol. Os trovões ficaram enciumados com o poder de Ëmëko Sulãn Palãmin, mas ele posteriormente os apaziguou. Yebá bëló formou a terra a partir de sementes de tabaco tirados de seu seio esquerdo e a adubou com o leite do seio direito. Ëmëko sulãn Palãmin então, dirigiu-se para a casa do terceiro trovão e lá encontrou com o chefe dos Dessana e com o terceiro trovão. Este deu a eles riquezas e cada par de enfeites representava um homem e uma mulher. O trovão ensinou o rito para transformá-los em seres humanos. O trovão recomendou então, que cada um colhesse uma folha nova de ipadu de um pé que havia no pátio e a engolisse. Quando sentissem dor na barriga, deveriam acender o turi (madeira produtora de fogo), molhá-lo numa cuia d’água e beberem o conteúdo, em seguida vomitarem em um só buraco do rio. Assim fizeram os dois heróis e apareceram duas mulheres muito bonitas. Feito isso, o terceiro trovão decidiu acompanhá-los para ajudá-los a formar a futura humanidade.”

A história dos índios Dessana traz vários elementos recorrentes na mitologia de vários povos. “A princípio não havia nada e as trevas cobriam tudo. Uma mulher, Yebá bëló se fez a si mesma” – Os mitos sempre falam das águas primordiais e do nada de onde tudo surge, ou seja, a figura do Caos grego e que depois gera Gaia ou Bhrama que nascem deles mesmos. Yebá bëló depois que se cria, pensa em como deveria ser feito o mundo. O antigo Caibalion egípcio tem como um de seus aforismos a natureza mental do mundo – primeiro vem o pensamento, depois a manifestação. O próprio I Ching, no seu ciclo, tem o hexagrama Ch´ien, o criativo que representa a concepção ou a criação anterior a Chên que seria o impulso inicial da manifestação. Este início da história já revela um razoável nível de complexidade teológica que parece em desacordo com a nossa usual imagem dos índios brasileiros como povos altamente primitivos.

O pensamento de Yebá bëló começa a tomar a forma de uma esfera que culmina numa torre. Na ciência dos números, este movimento de criação é normalmente representado por um círculo inicial e logo após pelo surgimento de um ponto que seria análogo ao cone que Yebá bëló cria com o próprio pensamento. Depois disso, ela cria os cinco trovões imortais que estariam associados aos cinco elementos (terra, água, ar, fogo e éter) ou às quatro direções (norte, sul, leste e oeste) e à ponta do cone (centro). O número 5 é normalmente associado ao homem, são os quatro elementos que o compõe mais o elemento espiritual da consciência. O cone, neste caso, seria uma combinação entre o mundo manifestado e o mundo espiritual.

Quando Yebá bëló cria Ëmëko sulãn Palãmin, este se encarrega de criar o sistema solar. Os trovões sentem ciúme, assim como os Titãs, simbolizando a sucessão de forças da natureza que vão sendo substituídas na sequência da manifestação. O universo se expande passo a passo, assim como os elementos vão surgindo e os filhos vão destronando os pais, assim como Zeus faz com Cronos.

Na sequência da história, Yebá bëló cria a terra e a fertiliza a partir do seu próprio corpo. Da mesma forma, acontece com Tiamat da tradição mesopotâmica e com Yimir (deus) da tradição escandinava ou Gaia da tradição grega, só que no caso de Tiamat e Yimir, Marduk e Odin os mata para então utilizar o seu corpo na criação. E curioso, pois o elemento do conflito não é tão claramente expresso no mito dos Dessana, não há uma ruptura clara entre os Trovões e Ëmëko sulãn Palãmin, mas antes um acordo, diferente dos outros mitos mencionados. Talvez esta seja uma diferença entre uma sociedade que projete mais a cooperação (o acordo entre as várias forças da natureza) e não uma drástica ruptura (quando acontece no momento em que um deus destrona ou mata o outro).

Ëmëko sulãn Palãmin, ao se encontrar com o chefe dos Dessana e o terceiro trovão para criar os seres humanos pode ser visto como a ancestralidade celeste que os Dessana reconhecem do seu povo, a exemplo das Dinastias tidas como Divinas no caso do Egito, Suméria, Babilônia, Japão, China e outros povos.

São muitos os paralelos entre o mito da criação dos Dessana e o mito grego relatado por Hesíodo e em distintos mitos da criação. Este são apenas alguns dos elementos explorados.

Há muito resgate a se fazer – o estudo da mitologia dos índios brasileiros pode lançar significativa luz sobre os mistérios da cosmogênese e colaborar para esta conexão mencionada inicialmente entre o homem e o sagrado.

Foto por lubasi. Disponível  em https://www.flickr.com/photos/44577875@N08/6310064259